segunda-feira, 9 de junho de 2008

Entre um tom de roxo e o azul de uma parede

Um passo. O esticar de uma corda. O cair de uma cadeira. Um tom de roxo no rosto. Sangue nos olhos. Apenas um passo. Apenas um simples passo a frente. É isso que separa Clara da nova vida que tanto anseia. Digo nova vida, mas não tenho a intenção de dar a entender que o que ocorreu a Clara, até agora, seja vida.
O que acontece, é que há em mim um romantismo inveterado do qual eu, por mais que tente, não consigo me livrar. Muito por força desse destino, carrego comigo o péssimo hábito de romantizar e florear a malfadada existência humana dando a ela, por mais ínfima que venha a ser, o nome vida.Apenas mais um passo. Para Clara só isso importa. Nunca esteve tão perto. Havia tentado outras vezes, mas algo sempre acontecia: ou por que planejara mal – e devemos admitir, é claro, não ser sua culpa, tendo em vista que este tipo de viagem não oferece condições ou oportunidades variadas em que se possa adquirir larga experiência; ou, e isso era o que de pior podia acontecer, alguém aparecia. Esse alguém, por mais diferentes que fossem os nomes pelo qual pudesse ser chamado – pai, mãe, vovó, ou tio Pedro – esse alguém sempre agia, exatamente, da mesma forma: interrompia Clara; dava-lhe um grande sermão sobre as conseqüências do que ela estava a fazer; e se apreçava logo a dizer, a quem pudesse ouvir, que foi o responsável por trazer Clara de volta ao convívio da família. Mas dessa vez nada daria errado. Nada. Clara repetiu isso a si mesma durante todo o dia. Nada daria errado! Não dessa vez. Nada, nada, nada...
Como que se inebriada por essa convicção, pôs-se de pé nas primeiras horas do dia. Hoje seria perfeito. Estava a sós em casa, e esses momentos eram raros. Adorava ficar assim, sozinha. As pessoas sempre lhe foram muito hostis. Havia algo em Clara que não as agradava. Quem sabe, seus cabelos negros sempre despenteados e caídos sobre seu rosto pálido? Não. Não podia ser isso, pois o tio Pedro sempre andara por ali com os cabelos bagunçados e uma barba terrivelmente grande, já grisalha e um tanto amarelada sob o nariz por causa do hábito de fumar um velho cachimbo já todo mastigado e fedorento.
– Ela sempre volta a crescer, dizia, é inútil lutar contra minha natureza. Era sua grande desculpa a respeito do desleixo com a barba.
– Você não tem jeito mesmo Pedro, és um velho turrão! E então, ouvia- se uma sonora gargalhada. Com o tio Pedro, o velho mais relaxado e largado que conheci, todos eram gentis, se não isso, pelo menos compreendiam seu desdém com a própria aparência. Ora, então por que quando se tratava de Clara todos eram rudes e ásperos? Agora, a observá-la diante de mim, percebo que o problema sempre esteve em seus olhos. A menina possui um par de olhos negros e grandes, que parecem não ter a preocupação de perceber formas, cores, luzes e brilhos, definindo objetos ou pessoas. Simplesmente estão ali – inexpressivos, quase inúteis. E ninguém, seja quem for, nem mesmo o cachorro da vizinha, gosta de ter sobre si, o tempo todo, um olhar desses que parece transpassar as pessoas ou não percebê-las. Queremos todos os olhares voltados para nós e quando alguém nos olha e não dá a devida atenção nos indignamos. Precisamos dessa atenção, desse segundo mágico no qual os olhares se fitam e se reconhecem uns nos outros. Tudo que queremos é ser percebidos, se há alguém no mundo que não é capaz de fazer isso por nós, esse alguém é um intruso e não deveria estar aqui. Clara era essa intrusa. Para ela as pessoas não têm nada de interresante, nada que mereça ser objeto de atenção. Todas sempre perdidas-em-seu-próprio-mundinho-pequeno e constantemente em busca de algum reconhecimento.
Ficar sozinha, isso sim era magnífico. Sentia se feliz por ter apenas as paredes a lhe ouvir. Elas não a questionavam. Podia dizer o que quisesse; elas nunca a repreenderiam. Havia uma parede em especial que lhe agradava muito. A parede da sala. Não a da janela, a outra: a parede azul. Costumava passar horas voltada para ela, como se contemplasse sua imagem refletida em um espelho. Sempre que percebiam isso, logo lhe arrastavam para outro canto da casa – normalmente seu quarto – ao que ela protestava aos berros. Inúteis berros que, por vezes, se calavam ainda a tempo de ouvir o girar da chave ao trancar a porta.
Não a trancariam hoje. Hoje, Clara faria sua viagem.
Providenciou o mínimo necessário. Não que tivesse pressa, já suportara este lugar por tanto tempo que algumas horas a mais, ou a menos, não fariam a menor diferença. Entendia apenas não precisar de nada do que possuía agora no lugar para onde iria. É bem verdade também que não possuía muita coisa, e que a decoração de seu quarto resumia-se a uma mesinha de madeira velha, mobília do tempo de sua avó, que possuía duas gavetas sempre abarrotadas de revistas e com as quais Clara se entretinha recortando figuras e fazendo colagens nos dias em que era trancada. Um pequeno armário com algumas roupas e, houve um tempo em que havia uma cama perto da janela. A cama já não está mais lá, quebrou há alguns meses e o pai a retirou do quarto com a promessa de concertá-la, mas como Clara não reclamou sua ausência e pareceu não se importar em dormir apenas no colchão e no chão com as baratas a zanzarem por seu corpo a noite, assim ficou. O pai deve tê-la vendido. Sob a mesa uma cadeira com as pernas meio tortas e gastas serve como refúgio e conforto para quando Clara quer se sentar. Esse móvel ela não deixou para trás, hoje cedo o trouxe aqui para o terraço e com ele uma corda que a muito estava jogada no quintal.
Há muito tempo, – ainda quando o olhar de Clara não incomodava ninguém e o tio Pedro tinha o habito de se barbear, ou um pouco depois que o perdera, não sei e isso pouco importa – a corda estava amarrada a um galho da árvore que existe nos fundos da casa. Na outra ponta da corda um pneu velho, recortado na forma de uma cadeirinha, formava com ela um balanço. Era a alegria de Clara. Naquele tempo sua mãe ainda lhe dava atenção e fazia questão de todos os dias ao entardecer ir com a menina ao balanço e balançá-la.
– Mamãe, mais alto, ela gritava, mais alto.
– É perigoso, minha filha.
A corda lhe trazia boas recordações, as lembranças de um tempo em que quase foi feliz, e deve-se a isso o motivo de trazê-la. Sobre as lembranças de Clara, ou até mesmo sobre as minhas ou as suas, uma observação faz-se necessária: elas não são retratos fiéis dos acontecimentos! Isso mesmo, lembrar não é recorrer a um arquivo imaculado em algum canto remoto de nossa cachola e encontrar ali todos os sentimentos do passado intactos. Lembrar é sim violar algo! Regurgitar e revirar os acontecimentos, reagrupando e os reencaixando como Lego para reformular todas as questões vividas a fim de torná-las mais agradáveis, mais inteligíveis, ou no caso de Clara, pelo menos suportáveis. Ninguém quer recordar coisas tristes e desagradáveis, quando nos deparamos com esses arquivos-lembraça ruins logo damos um jeito de alterá-los. Quanto mais recorremos a esses arquivos, tanto mais belos os deixamos. Sendo assim, é bem possível que todas essas tardes no balanço de que Clara se recorda agora nem se quer tenham ocorrido, ou pelo menos não dessa forma que a menina alegremente se recorda. Por ter apenas a memória como consolo e refugio a menina recorreu a ela tantas vezes que acabou por alterar todo o seu passado. Ao subir as escadas com a corda na mão Clara tem outra vez uma dessas lembranças, o tio Pedro com ela ao colo dizendo a uns amigos:
– Vejam minha sobrinha, não é a coisa mais linda? Tem os mesmos olhos que a mãe, negros e redondos como duas jabuticabas. Lembranças, lembranças, em breve Clara não precisara mais delas.
O terraço da casa há muito tempo foi muito bonito, com um belo piso quase escorregadio de tão lustrado, mas se você estivesse o vendo agora nas condições em que está iria me chamar de um grande e bela mentirosa. Não dá mesmo pra acreditar que esse lugar um dia esteve limpo e que a família de Clara se reunia aqui aos domingos para prazerosos churrascos e almoços ao ar livre. Lixo, lixo, lixo. Lixo por todos os lados. Caixas velhas, pedaços de jornal, telhas de aranhas e sou capaz de apostar que há qualquer bicho morto por baixo dessa porcaria toda. Ninguém sobe aqui mais, ou melhor, às vezes vem alguém, mas é só pra deixar mais tranqueiras.
E no meio desse entulho todo: Clara, a corda e a cadeira.
A apenas um passo de sua viagem: Clara, a corda e a cadeira.
Apenas um passo. O esticar de uma corda. O cair de uma cadeira. Um tom de roxo no rosto. Sangue nos olhos. Apenas um passo no vazio.

4 comentários:

Flora Ramos disse...

Menino Rusley. Que bom que conseguiu "despachar" a menina Clara. é uma bonita cena.


:)

Cecília disse...

a clara podia muito bem se entender com a anna..

Lee disse...

tem algo de familiar no jeito q vc escreve...
lembra um pouco as suas influencias literarias (aquelas vc lê e q eu cato na sua casa.. uhahuahu)
mas da pra te reconhecer imediatamente...
ou pelo menos eu saberia q o tratavasse de vc....

fikou bem bom ^^

bju nao desista de postar hein...

xD

Flora Ramos disse...

O Escritor de um só conto.

é isso?